É difícil alguém procurar um médico porque desconfia que tem diabetes tipo 2, a versão mais popular da doença. E até dá pra entender: estamos diante de um problema que quase não gera sintomas. Se eles surgem – boca seca e vontade intensa de urinar, por exemplo -, significa que a glicose no sangue já está superelevada.
“O diabetes tipo 2 muitas vezes é descoberto quando o pâncreas do indivíduo já perdeu 70% da capacidade de produzir insulina”, explica o endocrinologista Carlos Eduardo Barra Couri, pesquisador da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). Sem o hormônio, o açúcar dá sopa na circulação, provocando estragos.
O assustador é que a glicemia nas alturas abre as portas para uma série de encrencas: infarto, amputações e até alguns tumores. Hoje estima-se que 14 milhões de brasileiros tenham diabetes. Mas, por ser silencioso, metade não faz ideia disso.
Os 11 milhões de pessoas que estão no estágio do pré-diabetes – quando os níveis glicêmicos já se encontram alterados – também correm mais riscos do que as saudáveis. “Por isso devemos tratar o tema com urgência”, diz Couri. Leia-se: prevenir e flagrar a condição quanto antes. Não dá para aguardar os sinais baterem à porta.
Em primeiro lugar, falamos de uma doença fortemente atrelada à carga genética. Segundo o médico André Reis, professor de pós-graduação da disciplina de Endocrinologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), se o pai ou a mãe tem diabetes tipo 2, a probabilidade de o filho seguir o mesmo caminho na fase adulta gira em torno de 30%. Portanto, tem que acompanhar.
O quadro ainda guarda relação íntima com o estilo de vida. Nesse aspecto, o excesso de peso representa a maior ameaça. Além de brigar com o sedentarismo, é essencial cuidar da dieta como um todo – e não só maneirar no açúcar e nos carboidratos. Tem muita coisa escondida port rás da epidemia de diabetes. Desde outros deslizes à mesa até o aquecimento global! Que tal escancará-los?
Já fez o exame?
Independentemente da idade, você deveria fazer um teste de glicemia se…
- Está acima do peso
- Teve diabetes gestacional
- O filho nasceu com mais de 4 quilos
- Já infartou ou sofreu um AVC
- É hipertenso ou apresenta triglicérides ou colesterol alto
- Está no estágio de pré-diabetes
- Possui histórico familiar de diabetes
- Tem a síndrome dos ovários policísticos
Se você não se encaixa aí, o ideal é fazer exames de glicemia a partir dos 45 anos – e repetir a cada três anos.
Para ter certeza do quadro, os testes recomendados são:
- Glicemia de jejum
- Hemoglobina glicada
- Teste oral de intolerância à glicose
Abuso no sal
Há outro tipo de grãozinho branco que soma pontos ao diabetes. Só que ele é salgado. Pesquisadores do Instituto Karolinska, na Suécia, avaliaram o consumo de sódio entre 1 136 indivíduos com diabetes tipo 2 e 1 379 voluntários saudáveis. Perceberam o seguinte: quem ingeria altas doses do mineral do sal de cozinha (mais de 3,15 gramas por dia) apresentava um risco 72% maior de desenvolver a doença em comparação àqueles que não iam além de 2,4 gramas.
Para ter ideia, a recomendação oficial é que a gente use até 2,3 gramas da substância – o que dá 5 gramas de sal. “Uma hipótese é que o excesso de sódio interfere na resistência à insulina”, diz Bahareh Rasouli, autora da investigação.
Ora, nessa situação, o hormônio não atua direito e a glicose sobra no sangue. Outra possibilidade é que se empanturrar de itens salgados contribui para hipertensão e ganho de peso, quadros que encurtam o caminho para o diabetes. Para Couri, a relação é plausível, mas ainda falta uma explicação definitiva. Mesmo assim, convém maneirar.
Muita carne vermelha
Diversos estudos ao redor do mundo já concluíram que exagerar no alimento favorece o diabetes. Mas faltava avaliar populações asiáticas. Foi o que fez Koh Woon Puay, pesquisadora da Universidade Nacional de Cingapura. E, mais uma vez, o elo se mostrou intenso.
Fora a carne de vaca, os cortes mais escuros de frango, como a coxa, também exibiram uma relação com a doença. Para Koh, a culpa deve ser do ferro-heme. “Ele pode se acumular no pâncreas, afetando a produção de insulina”, conta. No caso da carne, outras substâncias estariam envolvidas, como as gorduras saturadas e os produtos de glicação avançada, que se formam ao tostarmos o bife.
Também não precisa cortar de vez
“A carne é fonte de aminoácidos essenciais”, lembra Couri. Então, a ideia não é aboli-la do cardápio. Basta comer com moderação – umas duas ou três vezes na semana. Koh sugere revezá-la com peito de frango e peixe.
O consumo de carne bovina no Brasil gira em torno de 40kg por habitantes ao ano
Cada brasileiro ingere, em média, 12g de sal por dia
Desequilíbrio no intestino
O problema aqui é com a comunidade de bactérias que vivem em nosso aparelho digestivo, a microbiota intestinal. Desbalanços nesse pequeno universo dentro de nós já são ligados a uma lista de encrencas. O diabetes faz parte dela.
Nos laboratórios da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no interior paulista, pesquisadores já notaram que cobaias geneticamente protegidas contra a doença perdiam essa blindagem natural quando sua microbiota não era lá tão favorável. De acordo com o endocrinologista Mário Saad, à frente dos estudos, a composição desse ambiente afeta até o tratamento do diabetes.
Como zelar pela sua flora
Enquanto não se sabe quais bactérias exatamente têm a ver com o diabetes, a dica é caprichar nas fibras, que nutrem os micro-organismos bons, e nunca usar antibióticos sem orientação médica.
Falta de vitamina D
Para o endocrinologista americano Michael Holick, professor da Universidade de Boston, há fartos indícios de que a substância tem papel de destaque na prevenção do diabetes tipo 2. Isso porque o nutriente (na verdade, um hormônio) estimularia a fabricação de insulina – é ela, você sabe, que permite a entrada da glicose nas células.
“Há pesquisas apontando que melhorar o status de vitamina D atenuaria a resistência à insulina em pessoas com a doença”, acrescenta Holick. André Reis, da Unifesp, diz que faz sentido imaginar que níveis adequados da substância resguardariam o pâncreas. “Só que ainda não dá para pensar em suplementá-la com esse objetivo”, pondera.
O endocrinologista Sérgio Maeda, do Fleury Medicina e Saúde, na capital paulista, concorda: “Para uma recomendação oficial, as evidências de benefícios precisam ser muito contundentes.” Na dúvida, garanta a vitamina com banhos de sol diários.
Exposição à poluição
Após avaliar quase 3 mil pessoas, a epidemiologista Kathrin Wolf, do Helmholtz Zentrum München, na Alemanha, encontrou uma curiosa conexão entre poluição do ar e resistência à insulina, situação precursora da doença que adoça o sangue. “Esse elo se mostrou mais proeminente em indivíduos com pré-diabetes“, observa Kathrin.
Mas há pistas de que gente saudável estaria igualmente ameaçada. Uma revisão saudita de 21 estudos reforça a relação. “A hipótese mais aceita é a de que os poluentes ocasionam um processo inflamatório”, explica Mário Saad, da Unicamp. E inflamação demais, já se sabe, dificulta o trabalho da insulina.
É preciso mudar as cidades
Kathrin e outros experts creem que a redução da poluição depende de um replanejamento urbano. Dentro dele, vale promover e apoiar o ciclismo, o transporte público, os veículos elétricos e os espaços verdes.
Cerca de 6,5 milhões de pessoas morreram no mundo, em 2015, por causa da poluição do ar
Aquecimento global
Sim, até ele. Cientistas da Universidade de Leiden, na Holanda, calcularam que a elevação de 1 °C na temperatura do planeta responderia por mais de 100 mil novos casos de diabetes nos Estados Unidos a cada ano.Já existem especulações em cima dessas previsões – e elas envolvem o nosso tecido de gordura marrom. Ao contrário do branco, ele é responsável por gastar energia. Mas onde entra a meteorologia?“A tal gordura marrom é ativada em um clima mais frio”, esclarece Saad. E esse contexto favoreceria uma modesta perda de peso e o desempenho da insulina. Agora, se o clima esquentar…A temperatura média do planeta no ano passado foi 0,94°c mais alta que a média do século 20
Altos níveis de estresse
Anda por aí parecendo uma bomba prestes a explodir? Pois viver assim deixa o terreno fértil para o diabetes irromper. Pelo menos é o que sinaliza uma pesquisa recente da Universidade de Newcastle, na Austrália.
Na investigação, 12 338 mulheres foram convidadas a relatar quão estressadas se sentiam em diversos âmbitos (financeiro, amoroso…) durante 12 anos. Cruzando essas impressões com a taxa de diagnósticos de diabetes, os estudiosos viram que a tensão moderada ou alta aumentava o risco de a doença ser diagnosticada.
“O que pode acontecer é que, em indivíduos predispostos, o estresse aceleraria essa situação”, interpreta Reis. Segundo a psicóloga Graça Camara, membro do Conselho Consultivo da ADJ Diabetes Brasil, é compreensível, já que o nervosismo e a ansiedade levam à produção de hormônios como adrenalina e cortisol. “E eles atrapalham a função da insulina”, justifica.
Depressão
(Foto: Tomás Arthuzzi/SAÚDE é Vital)
Está aí um contexto emocional mais conturbado e que também mexe com hormônios, acarretando dificuldades extras para o açúcar ser aproveitado pelas células como energia. Como se não bastasse, Couri, da USP de Ribeirão Preto, lembra que alguns medicamentos utilizados para tratar a depressãopodem piorar a ação da insulina.
Mas não é só a via biológica que conta aqui. “Esse paciente provavelmente se exercita menos. E, com pouca energia, acaba mais suscetível a ganhar peso”, exemplifica a psiquiatra Luciana Pires, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
Por isso, é importante que alguém deprimido receba suporte adequado para evitar dilemas que vão além da tristeza profunda. Cabe lembrar que o caminho inverso também é possível. “Na confirmação do diabetes, a pessoa precisa mudar muito seus hábitos. E, às vezes, isso se torna pesado”, repara Graça. Não é à toa que, sem uma boa orientação, possam surgir sintomas depressivos.
Atualmente, 400 milhões de pessoas convivem com depressão no mundo
Problemas de sono
Dormir pouco é como estar submetido a uma condição de estresse”, define a médica Sônia Togeiro, do Instituto do Sono, em São Paulo. Não importa se a privação é intencional ou patológica (insônia), ela propiciará a liberação de hormônios que servem de obstáculo para a insulina cumprir sua função.“Por outro lado, o sono ajuda na produção de substâncias que protegem contra o diabetes”, informa a especialista. Não falamos daquele descanso superficial. Para o corpo ficar em equilíbrio, a qualidade do repouso faz diferença.
Até porque passar tempo demais na cama não é a solução. Em revisão assinada pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos, identificou-se que dormir mais de oito horas diariamente elevava o risco de diabetes.
Sônia nota ainda que formas moderadas e graves de apneia, distúrbio marcado pela interrupção da respiração durante o sono, também se associam à doença. São bons motivos para dar fim às noites tumultuadas.
Ovários policísticos
De acordo com a endocrinologista Silmara Leite, presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia – regional Paraná, 80% das portadoras de síndrome dos ovários policísticos, a SOP, apresentam resistência à insulina. “Mas que fique claro: cistos na região não são suficientes para cravar o diagnóstico do distúrbio”, frisa Silmara.
Ele é marcado por outras características, como aumento nos níveis de testosterona, irregularidade menstrual, acne, excesso de peso e por aí vai. São sintomas que merecem ser investigados justamente para a síndrome não passar batida – e, com ela, as altas taxas de açúcar no sangue.
8 em cada 10 mulheres com SOP têm resistência à insulina
(Foto: Tomás Arthuzzi/SAÚDE é Vital)
Beira o óbvio que a inatividade física, junto com uma dieta desequilibrada, predispõe à obesidade, grande motivo por trás do diabetes tipo 2. Ocorre que ficar paradão é, por si só, um perigo.
O educador físico Fábio Lira, professor da Universidade Estadual Paulista em Presidente Prudente, afirma que o sedentarismo torna mesmo indivíduos com peso normal mais propensos à doença. Logo, é primordial se mexer.
Isso não é sinônimo de almejar um corpo trincado. O simples fato de ser ativo já blinda o organismo de enfermidades crônicas. “A atividade escolhida é indiferente. Importante é se exercitar regularmente, durante a vida toda”, reforça Lira.
O educador físico Winston Boff, do Instituto da Criança com Diabetes, em Porto Alegre, recomenda estimular a prática esportiva desde a infância. Assim, sobe a chance de vermos mais adultos saudáveis por aí.
E, se o diabetes der as caras, não há razão para cancelar a academia. Exercitar-se – com supervisão – ajuda a controlar melhor a glicemia.
62,1% dos brasileiros com 15 anos ou mais não praticaram qualquer esporte ou atividade física em 2015
38,2% dos sedentários citam a falta de tempo como principal motivo para não saírem do sofá
Hepatite C
A relação entre uma doença e outra é tão nítida que a Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) lidera uma campanha para incentivar a realização do teste que detecta o vírus da hepatite C. “Ele desencadeia algumas alterações no organismo que fazem com que a insulina não trabalhe direito”, ensina o endocrinologista Luiz Turatti, presidente da SBD.
Na prática, a presença do agente infeccioso aumenta em quatro vezes a probabilidade de um indivíduo se tornar diabético. O teste para flagrar o vírus é rápido, indolor e está disponível no Sistema Único de Saúde. Definitivamente não tem por que correr esse risco.
Outra doença que não faz barulho
Cerca de 2 a 3 milhões de brasileiros têm hepatite C, mas (pasme!) 85% não estão cientes disso. O vírus pode ser transmitido por meio de procedimentos que envolvem sangue, como manicure, tatuagem e tratamento dentário.
(Infográfico: Mayla Tanferri/SAÚDE é Vital)
(Infográfico: Mayla Tanferri/SAÚDE é Vital)
(Infográfico: Mayla Tanferri/SAÚDE é Vital)
(Infográfico: Mayla Tanferri/SAÚDE é Vital)
Fontes: Organização Mundial da Saúde; Carlos Eduardo Barra Couri, endocrinologista da Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); Escola de Medicina Icahn do Hospital Monte Sinai (EUA); e Administração Oceânica e Atmosférica Nacional dos Estados Unidos
Fonte: Saúde Abril